SOMBRAS

      
          

SOMBRAS

Sou cinza e sangue, o eco das galés,
Dos filhos que em grilhões se consumiram;
O sal no rosto, os prantos de Moisés,
E os gritos que no tempo infeneceram.

Sou réu dos muros feitos por temor,
Do gueto que selou o filho hebreu;
Do verbo que expulsou sem ter pudor
Os justos sob a estrela de um céu seu.

Voz calada em fogos da inquisição,
Das místicas que a pira devorou;
Sou lâmina que, em nome da razão,
As almas pitonisas trucidou.

Nas cruzadas vesti o escarlate,
Deixei atrás mil corpos por um templo; 
Sobre Deus, fiz mercancia no combate,
Troquei o céu por crimes sem exemplo.

Em mares fui corsário e semeador
De ruínas nas naus de inocentes;
Na África, lancei algema e dor,
E em leilões vendi os impotentes.

Tracei fronteiras como um deus profano,
Rasguei a terra com punhal de rei;
Chamei “civilizar” o vil engano
Impondo o credo a quem jamais julguei.

Em névoa de fornalhas industriais
Queimei crianças em canções sumárias;
E em campos frios, por fins genocidais,
Deixei milhões em lápides precárias.

Fui lâmina na mão do inquisidor,
Cruzei no corpo alheio a fé negada;
Em nome de Deus, logrei meu rancor,
De Ala e de ti, ó alma iluminada.

Sofistas fui, nas praças do engano,
Vendendo paz com lábios de serpente;
Ergui muralhas contra o ser humano
E fiz do meu vizinho um penitente.

Fui foice na floresta dos Tupis,
Flechei o som da mata e do pajé,
E à sombra de euro bandeiras gris,
Apaguei mil culturas com a fé.

Com pólvora tornei-me redentor,
Em nome de um império e de uma cruz;
Roubei das mãos da terra o seu sabor,
Chamei de “ouro” o que era vida e luz.

Fiz veneno do verbo “salvação”,
Vertido em rituais de espada e trovo;
Pelo canto ameríndio em conversão,
Dei ao caos a alcunha: “mundo novo”.

Fui peste e sede, açoite e ladainha,
Com o sangue dos Andes fiz meu pão;
Se havia templo, alma, voz e vinha,
Plantei meu Deus e ceifei sua nação.

Fui sombra sob o julgo do operário,
Que em fábricas pedia liberdade;
Apus a lei em gesto temerário,
Trajando de silêncio a verdade.

Fiz do Partido um templo sem perdão,
Dissipei dos mártires, cinzas ao vento;
Ergui monumentos à repressão,
Aos ideais impus esquecimento.

Na noite sem registro nem memória,
Fui o capuz, o porão e o sumiço;
Risquei os nomes nos livros da história,
Simulando de “paz” o sacrifício.

Na praça, disfarcei meu grito em hino,
Sorri com fardas, tanques e censura;
Mas cada corpo achado em desatino,
Dormia a pátria — morta de tortura.

E ao ver-te, ó Cristo, em pranto derradeiro,
No madeiro cruel que ergui por mim,
Neguei-te o rosto, o gesto verdadeiro,
Por não caber meu ódio em teu jardim.

Sou fruto da ambição sem alvorada,
Da raça que esqueceu-se de ser luz;
Herança sou — de tudo, e quase nada:
De ter matado o Amor que nos conduz.

Contemplo agora o espelho do passado,
E vejo em mim as sombras que neguei;
No pranto do inocente massacrado,
Encontro o mesmo Deus que rejeitei.

Ó alma minha, em trevas submergida,
Que negas o amor em solução;
Se ao próprio Cristo, dei a cruz erguida,
Dirás ao meu irmão em aflição.



Édson Depieri
www.edsondepieri.com

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