REENCONTRO
REENCONTRO
No silêncio das alvoras,
Nas corolas sonhadoras,
Nas saudades vultuosas,
Veio a luz dum tempo vão.
Era ele, o peregrino,
Feito espinho em velho hino,
Que de guerras fez destino
E esqueceu do próprio chão.
Sob a bruma que cintila
Qual memória que vacila,
Seu olhar no céu destila,
A lembrança do que amou.
Foram léguas de fadiga,
Muitos sóis, nenhuma abriga,
Mas no peito a mesma antiga
Paz que um dia ela lhe doou.
Ela, em véus de claridade,
Velou séculos de saudade,
Tecelã de eternidade,
Nos umbrais do firmamento.
Prescindindo sua aurora,
Na esperança que não chora,
Viu por eras, hora a hora,
O seu vulto em sofrimento.
Do celeste véu descia,
Com o brilho que envolvia
Toda a dor que não morria
Nos caminhos do querer.
Ela vinha, estrela exausta,
Sobre a sombra fria e falsa,
Para erguer a chama alta
Do que nunca quis morrer.
Ele errante, alma em luto,
Como o som dum canto bruto
Degustava o mesmo fruto
Nas campinas do pesar.
Cada escolha, cada passo,
O afastava do abraço
E lançava em novo aço
Seu anseio de voltar.
Tomba ao chão, e volta à lida,
Sem memória ou luz erguida,
Na batalha repetida
Sempre ao ver o sol raiar.
Lança ao vento o seu clarim,
Rasga o véu do próprio fim,
E renasce sempre assim:
Para a guerra retravar.
Cincas mais uma jornada,
Sob a luz envenenada,
Busca glória ensanguentada
Que não sabe discernir.
Torna ao campo, torna à dor,
E o que logras ser amor
Se converte em novo ardor
De insistente sucumbir
E a guerreira do invisível,
Em labor incompreensível,
Se tornou quase impartível
De sua eterna missão.
Sobre espinhos e delírios,
Se abstendo dos empíreos,
Reescrevia os próprios lírios
Pela sua redenção.
Fez da dor a penitência,
Das memórias, resistência,
E em meio à decadência
Se lembrou de um certo olhar.
Era o rosto, era o aceno,
Era o beijo puro e pleno,
Que do tempo fez terreno
Pra poder se reencontrar.
Ela enfim desceu da esfera
Onde a luz jamais se altera,
Onde a alma, pura e vera,
Não conhece escuridão.
E por ele vem ao mundo,
Ao inferno mais profundo,
Onde o fado, vagabundo,
Lhe partira o coração.
Com as vestes de esperança,
Com a força da bonança,
Com a luz que não se cansa,
Ela entrou no campo vil.
Na trincheira do perdido,
Do vaidoso e corrompido,
Procurou no ser ferido
O seu anjo mais gentil.
Foi ferida por granadas,
Foi traçada por espadas,
Desceu rotas já queimadas
Para seu próprio martírio.
Mas jamais soltou a mão
Daquele que à perdição
Se entregara em tentação,
Pelas rotas do delírio.
Ele a viu entre as ruínas,
Como luz em campas finas,
Como flor entre as neblinas
Do mais turvo e vão sofrer.
E chorou como criança,
Ao sentir que a esperança
Tem perfume e tem bonança
Mesmo após tanto perder.
Ela o ergueu sem palavras,
Fez do pranto novas lavras,
E ao invés de rotas bravas,
Lhe mostrou novo lugar.
Foi no gesto que o venceu,
Foi no tempo que esqueceu,
Tudo aquilo que o perdeu
E o impedia de amar.
Os seus olhos, tão cansados,
Espelhavam os passados
Como sóis ensanguentados
Que renascem na amplidão.
Mas no olhar dela havia
A promessa que sentia
Que a derrota mais sombria
É prenúncio de perdão.
E por fim, se finda a guerra,
A poeira volta à terra,
A romã não mais descerra,
Silenciou-se o rancor.
Tal borboleta dourada,
Por sob nau encantada,
Ela então foi desejada,
Como pedra de valor.
Mãos unidas, olhos plenos,
Zelo terno de Galeno,
Dois destinos tão serenos
Num só canto de calor.
Ela disse: — “Tu vieste!”
E ele: — “O meu bril, foi a peste,
O meu erro foi celeste,
Mas teu zelo foi de amor!”
Sob as estrelas reluzem
O próprio éden em vertigem
As palavras que conduzem
À mentira e à ilusão.
Ali tudo era verdade,
Era paz, era vontade
De viver a eternidade
Com um só coração.
Ela então beijou-lhe a face
Nova nauta em tenro enlace,
Da velha saga o disfarce
Para o novo começar.
Não havia céu ou chão,
Nem juízo, nem razão,
Só um sim do coração
A aprender de novo amar.
E nas margens mais divinas,
Feito fonte entre colinas,
Foram almas peregrinas
Numa estrada sem final.
Ele agora conhecia
O que a dor não lhe dizia:
“O amor só principia,
Quando é puro, imortal”.
Seguem hoje, mãos erguidas,
Com novas flores colhidas,
Nas veredas redimidas
Por um gesto de paixão.
E quem crê que amor se perde,
Que no abismo não se acerde,
Desconhece o amor tão verde
Que floresce do perdão.
Depieri
05/2025
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